quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Um Conto para Arlene


Era sábado de carnaval e ela encharcou a sapatilha numa poça de água ali, perto da Praça da Matriz. Arlene não sabia o que dizer ao noivo que havia deixado na porta da igreja por causa de Jorge, que viera do outro lado da ponte para tirar-lhe o sossego, as roupas e desgrenhar o seu cabelo, como um vendaval de Santa Rosa.
Jorge era um tipo daqueles que não dava vontade de tirar os olhos de cima. Um corpo pequeno, sem viço, porém atrativo pelo cheiro, pela boca que dava sede de água, água de qualquer tipo, sede de água da chuva, de água de poço, de água suja que se atira nas pessoas em dias de entrudo momesco. Água, apenas água com sabão era o cheiro de Jorge, o castelhano que atravessou a ponte e veio para a Vila de Jaguarão destroçar o coração de Arlene.
Nada tinha de mais na figura de Arlene. Era loira e alta, mas tinha viço, o mesmo viço que Jorge não tinha. Era bonita de rosto, um rosto forte de magricela, magricela por que alta, alta porém elegante no andar. Ela trabalhava de professora, era de família pobre, dessas que não tem grandes sobrenomes portugueses para ostentar. Era noiva de um tal Gervásio, que trabalhava no açougue do Mercado Público.
Não que Arlene gostasse dele, estava noiva por pressão da família que a queria casada a todo o custo. Arlene gostava mesmo era de Jorge, o castelhano que cheirava a sabão com água e que não tinha viço no corpo, mas atravessava a ponte para ter com ela na porta da igreja em dia de carnaval. Ela ali de sapatilhas encharcadas e ele com aquela boca que dava sede, sede de água de qualquer tipo, de água de poço, de água suja de se atirar nas pessoas em dias de entrudo momesco.
Nunca se soube por que Jorge, o castelhano, que cheirava a sabão com água, atravessava a fronteira para ter com Arlene, de sapatilhas encharcadas, na porta da igreja. Sabe-se que ela largou tudo por aquele homem que lhe causava sede, tudo para ter com ele em feliz, felicidade, numa casa modesta, logo que cruzava o Clube Unión, ali no Río Branco. Ele, Jorge, um homem sem viço no corpo, que cheirava a sabão com água e que causava sede em Arlene. Ela, magricela, com uma cabeleira loira, professora do primário, de sapatilhas encharcadas na porta da igreja, para ter com ele para sempre.
Quando Jorge alcançou Arlene, ali na frente da matriz, no dia em que ela abandonou Gervásio no altar, apenas disse-lhe ao pé do ouvido:
- Estoy aqui apenas para despeinar teus cabelos, para ser feliz de felicidade modesta, de coisas modestas. Para que atravesses de vez comigo para o lado de lá e vivas comigo para siempre!
E assim foi que ela, magricela, de sapatilhas encharcadas, professora pobre e sem sobrenome português, Arlene de batizado e nascimento, atravessou a fronteira, vestida de noiva para ter seus cabelos despenteados por Jorge, o castelhano, que cheirava a água com sabão e que não tinha o mesmo viço no corpo que ela, mas que a curou da sede, assim como ela lhe deu viço e sorriso, no dia em que beberam água suja de se jogar nas pessoas em dias de entrudo momesco.


sábado, 17 de dezembro de 2011


“A Música é a minha Vida e a minha Vida é a Música” *
Juliana Nunes
Osvaldo Emílio Medeiros de nascimento, conhecido por todos como Mestre Vado. Nasceu aqui mesmo, em Jaguarão, e passou toda ou pelo menos boa parte da sua vida numa casa verde, cheia de música, que exalava música de suas paredes, situada ali, na Rua do Cordão.
Disse-me Vado uma vez que tinha por mãe uma mulher chamada Joaquina Medeiros e que era filha de português com africana e por pai Roberto Madeiros, brasileiro, mas com sangue castelhano e acrescentou: “deve ser por isso que sou tão sentimental.”
Com seu modo simples de vida, Vado costumava ensaiar com seu saxofone todos os dias, de maneira religiosa, para não perder a embocadura. Os primeiros ensinamentos musicais começaram aos doze anos de idade, em casa mesmo, com o pai, que era músico e sapateiro; Vado tentou seguir os passos do pai nesta última profissão, porém desistiu pelo amor à música.
Ainda nesse mesmo perído, Vado foi estudar música com o mestre baiano Euclides, que estivera de passagem por Jaguarão, e com o qual aprendeu os fundamentos principais do estudo na área da música, como solfejo entoado “sem prestar instrumentos”. E fez questão de dizer que nunca havia estudado em conservatório!
Aos treze anos já tocava um pouco e dessa forma foi convidado por Theodoro Rodrigues – um dos fundadores do Clube Social 24 de Agosto – para sair no Cordão Carnavalesco União da Classe e tamanha foi a alegria de Vado ao saber que ele, um guri de calça curta, iria tocar no Cordão do 24: o Teodoro veio falar com meu pai para sair no Cordão do 24, eu estava até jogando bola ali, de calça curta, quando vieram me chamar, ah! pulei de contente por sair no Cordão do 24, e todo mundo ia ver o cordão do 24 que tinha um guri que tocava.”
Sua folia juvenil começava nos salões do Clube 24 de Agosto, onde, portanto, iniciou sua carreira musical propriamente dita. Mas tocou também no Cordão do Eponino, em Río Branco nas cordas de sopro do candombe, tocava tango em clubes daqui, nos clubes do lado de lá, fez parte do conjunto Os Rainha e como ele mesmo disse: “tocava tango, milonga, e toquei em diversos lugares, toquei em igrejas, hospital, e muitas vezes em enterro, e enterro era praxe, morria um conhecido ia tocar.”
Seu conhecimento musical ia além do cancioneiro popular de ambos os países, tanto Brasil, como Uruguai, tocava pequenas peças clássicas; porém ao prolongar da nossa conversa, Vado se revelou um eterno chorão, gostava mesmo era de um “Carinhoso” bem chorado, sendo esse gênero musical tema de suas composições.
Mestre Vado trazia consigo, além de toda a sua vivência, a memória da sua mãe e da sua avó, ex-escrava radicada na mesma Rua do Cordão, a qual contava dos antigos enterros africanos que aconteciam nas redondezas e o início dos cultos umbandistas em Jaguarão: eram os cordões funerários da mão dada. Lembrou-se ainda do tempo em que se dançava bumba-meu-boi em Jaguarão, do Manoel Catarina fantasiado de mulher, brincando e folgando numa tradição trazida de outras regiões. Disse-me da violência do entrudo e de como se jogava água de balde nas noites de folia carnavalesca.
Osvaldo Emílio Medeiros – Mestre Vado - sempre será nosso grande Mestre que ensinou tantos outros músicos e sempre estará vivo, caminhando com seu passinho devagar, atravessando a rua para ir à missa na igreja da Minervina, descendo a rua da praia para rever um antigo amigo, trocar experiências musicais ou simplesmente para tomar um café.
A grandeza do Mestre Vado, tanto a musical, como a pessoal, ficará incrustada nas pedras de cada rua, nos salões dos clubes onde não podia dançar, mas onde se permitia o “choro” do seu piston, nas lembranças dos velhos amigos, dos jovens que o admirava, nos carnavais que embalou, nas avenidas por onde desfilou. Ficará na memória, na história e principalmente, ficará para sempre na música.
Viva o Mestre Vado! Viva a Música Popular!
*Texto feito a partir de uma entrevista concedida por Mestre Vado em julho de 2008.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Piso do Mercado
portão lateral com vista para a Ponte
os gatos do Mercado
o antigo almoço uruguaio
as rachaduras, as grades enferrujadas
as antigas bancas de venda
o peso da memória
a loja de discos que fica na esquina
cadeados
o telhado
o estrago
o tempo
o silêncio