domingo, 31 de julho de 2011

Venho do Alasca, da escuridão, da carne e do tempo
Há pessoas sem pescoço passeando na minha rua...
É estranho esse naufragar das coisas indigestas...
E mais estranho ainda esse rosto que figura no espelho...
Criaturas insanas de cabeleiras de fogo transfiguram a angústia e a dor...
E os sapos da noite tramam a insônia constante dos dedos
Sinto uma imensa sensação de delicadeza...
E nesse carro deformado e cheio de gente, sinto olhos verdes por cima de mim
Mãos inchadas, pernas doloridas e inúteis...
A tarde se aproxima sem grandes auroras!
E as neves dessa primavera estão se desfazendo em busca do encontro das rosas de marfim com os cravos de lama...
Olhos doloridos e cores inexplicáveis aparecem nesse instante...
Porque permaneço no abismo desse sistema?
E nesse formigueiro constante que caminha na minha alma
Lembro-me do sussurro mudo da poesia que declamei no escuro
Porque sinto essa imensa saudade, Lorca?

Essa é de tempos atrás, não curto muito, mas resolvi tirá-la do baú depois que assisti um filme sobre a vida de Federico García Lorca e senti saudades do tempo em que lia todos os dias uma poesia sua.

Um poema e um Río

Mais alguns dias e estarei a salvo.
A tormenta que ronda as barragens, formando redemoinhos, parece que irá estancar o sangue do meu coração, quente e dormente.
Sinto as formigas do meu corpo caminharem para a cabeça e as mãos automaticamente ficarão úmidas.
Lembrarei daquela menina sem dentes que me sorria um sorriso choroso, como é o meu, mas seguirei em frente como se o nada e o vazio pudessem trazer algo de inquietante e dolorido, de contra gosto e de paz.
O que desejo mesmo é não desejar tanto! O que sinto é tanto e não é sentir tanto quanto gostaria de que fosse verdade.
Naquele dia em que o céu avermelhará, e a terra verde transbordará, meus pés se enterrarão numa lama de calçadas perdidas.
E o vento sul guiado por estrelas me levará para el Río de la Plata.

Para onde foi o Ambrósio?

Era noite alta e fria dos meses de junho, quando, no povoado do Espírito Santo do Serrito do Jaguarão, Ambrósio, de 26 anos desapareceu em busca de sua família. Era um mulato forte, de uma sensibilidade profunda. Contam os mais antigos que dentro dos olhos de Ambrósio podia se ver duas gotas pérola, deixando seu semblante mais enigmático, encantando quem chegasse perto do rapaz.
Todos desconhecem os motivos que levaram o pobre a colocar suas parcas roupas nas costas e sair, desatinado, noite de inverno a fora em busca de seus familiares que há muito havia perdido o contato. Viram-se pela última vez na cidade de Rio Grande, quando a desgraça do destino os separou quase para sempre.
Depois de alguns dias de caminhada, e enfrentando toda a sorte de ricos, chegou ao seu primeiro destino: a cidade de Candiota. Nesse lugar Ambrósio cria que estivesse sua família, entretanto o que possuía de concreto sobre isso eram as últimas palavras de sua mãe: “não se esqueça de mim meu filho, estaremos pelas bandas de Candiota”. E foram essas palavras que motivaram a fuga do jovem rapaz.
Sua trajetória poderia passar despercebida, se este jovem fosse uma pessoa comum, com o direito de ir e vir garantido, e não tivesse sido arrancado de sua terra natal e de sua família ainda menino e levado à fronteira jaguarense, para trabalhar sob o regime escravista, numa fazenda. Sobre esse jovem nada mais se sabe que a quantia que se pedia pela sua captura, os motivos que o levaram à fuga, o possível paradeiro e, especialmente, sua procura pela tão sonhada liberdade.
A liberdade almejada por Ambrósio só viria vinte anos mais tarde, com a abolição da escravidão em 1888. Devemos pensar, entretanto, que a lei Áurea livra os negros escravos dos açoites da senzala, como diz um antigo samba da Mangueira, mas os prende a um sistema que os deixou à margem da sociedade, além de enfrentar o preconceito étnico-racial.